segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Abaixo segue o meu relato de prática, texto exigido aos professores pela Olimpíada Brasileira de Língua Portuguesa - Escrevendo o Futuro - da qual eu e minha aluna fomos Medalha de Prata, em 2010. Publiquei-o neste blog porque acredito que possa ser útil a professores em qualquer segmento, de qualquer classe ou de qualquer instituição. É, na verdade, o meu divisor de águas enquanto profissional. Abraço a todos e boa leitura!

Do calvário à Ressurreição
            Atire a primeira pedra o docente que nunca se utilizou do clichê: “não é fácil ser professor hoje em dia”, e, por isso, sentir-se no direito de ensinar de qualquer jeito. Eu mesma já me deixei seduzir pela apatia e mediocridade com que planejamos e “repassamos” conteúdo. Usamos a justificativa de que nossos alunos não se interessam mais por coisa alguma e que há uma irremediável inversão de valores nos atingindo, empurrando-nos não para novos desafios, mas simplesmente para o cumprimento do dever.
            Dei uma olhada superficial no conteúdo do Escrevendo o Futuro 2010 e, por estar no planejamento, iniciei o estudo sobre Crônica, na sala do 9º. Sem muitas perspectivas. Afinal, uma competição em nível nacional parecia inacessível a meras crianças carentes, que falam e escrevem sem conseguir fazer uso ou se interessar pelas regras do Português Padrão, como também ainda se encontram alheias aos benefícios da era digital.
            A priori, não atribui ao caderno do professor, elaborado pela Olimpíada, o valor merecido. A verdade é que nos acostumamos a estar “sem tempo” quando de fato nos colocamos indisponíveis a práticas que exijam mais esforço e paciência.
            E sem qualquer empolgação, realizei a primeira oficina. _ “O que é crônica?”, perguntei. Vagos olhares, bocas em bocejos, soneca diante de mais uma monótona e “inútil” aula de literatura. Por segundos, pavor e raiva quiseram me dominar. Insisti na pergunta, dessa vez, com um tom nervoso.
             A fim de quebrar o “ice-berg” em que a aula havia se transformado, um aluno respondeu: _ “Professora, crônica deve ser uma coisa muito ruim!”
            Eu, amante que sou de Fernando Sabino, Arnaldo Jabor, Luiz Fernando Veríssimo e etc, etc, entalei-me. Perguntei por que ele pensava assim. Disse-me o garoto:
_ Eu estava tossindo muito e tendo febre à noite. O doutor disse que era bronquite crônica. O psiquiatra falou que a depressão da minha mãe já está na fase crônica. E o meu pai, quando se endivida, fica mal-humorado e diz que a situação é crônica. Desse jeito, crônica é ou não é ruim?
            Não houve como evitar as gargalhadas. Aquela resposta não só quebrou o “ice-berg” disfarçado de aula literária, como também me levou a um instante machadiano de epifania. Questionei-me: “Por que... Para quê eu estava ali?”  Se o salário não compensa, se os índices de construção do conhecimento estão dia após dia mais  baixos, se as famílias estão desestruturadas e não conseguem mais convencer os meninos e meninas do Brasil de que a educação é a melhor herança que podemos adquirir, por que, então, eu insistia em estar ali??? Olhei para aquelas crianças e as amei profundamente. Tentei me ver como elas estavam me vendo. Odiei-me. Percebi que o imprescindível não é o que acho que posso ensinar, e sim, o quê e de que jeito eles se interessam em aprender. Não poderia mais condená-los à mediocridade de um ensino apenas propositivo, que gera assimilação, mas não liberta a mente e não constrói o conhecimento.
            Mesmo sabendo que famílias, sociedade e, às vezes, escolas estão contribuindo para a “deFORMAÇÃO” humana, eu, naquele instante, desejei, se não mudar a postura dos meus alunos acerca da importância da leitura e da escrita, pelo menos mudar a minha, em relação a fazer útil o meu conhecimento, tornando-o arma potente no “enfrentamento do fracasso escolarl”. Foi então que “mergulhei” no material didático da olimpíada, e só emergi de lá quando estava reformulada  para a MUDANÇA...
            A segunda oficina foi memorável! Entrei na sala, não fiz chamada; não disse uma palavra. Fitei os olhos dos meus alunos e esperei alguma reação...  Olhares críticos. Quis estremecer, mas estava munida de  argumentos reais, como: “reduzir o iletrismo”. Então, direcionei-me ao centro da sala, esperei o silêncio necessário para a manifestação da “graça”. Os alunos captaram a essência do momento e, movidos pela curiosidade, ficaram atentos e concentrados. Peguei minha boina de couro e a pus na cabeça oficiosamente; incorporei o poeta em mim que, desde a faculdade andava adormecido. Como numa cena de teatro, bradei:
_ Uma crônica pode nos emocionar... fazer rir... pensar e... às vezes nos proporciona oportunidades de fazermos as pazes com certos desastres da vida! (Caderno A Ocasião faz o Escritor).
            Todos se entreolharam. Escutei em um bom “cearês”: _ “Vixe, doido, a tia arrasou, ó...”
            Aplausos e pedido de bis ajudaram-me a medir a interatividade e o desejo deles em perceber o novo. Os bocejos da primeira oficina foram trocados por risos, e opiniões, e perguntas...Já que o caminho se abrira, vamos à Crônica!!! Dramatizei “O Filtro Solar”, de Pedro Bial e “A Última Crônica”, de Fernando Sabino. Bial trouxe ânimo novo. Sabino causou neles um desejo de descobrir o que se escondia nas entrelinhas de um sorriso tímido e puro de uma criancinha negra.
            Se a primeira oficina fez lembrar-me do calvário de Cristo; a segunda, revelou-me o milagre da ressurreição. De alunos apáticos e condicionados à conteúdos para coadjuvantes da Arte, ainda tímidos, é verdade, porém com o botão da motivação acionado. Aí ficou fácil transformar aulas de Literatura, Artes e até de Gramática em “saraus” animados, troca de idéias e de experiências de vida. Estudamos a ironia em Machado de Assis, a metáfora em Armando Nogueira; a visão de amor de Paulo Mendes Campos; as relações pessoais através de Moacyr Scliar, no texto “Cobrança” e, por fim, preparamo-nos para escrever...
            As primeiras produções foram desanimadoras. Deficiências gramaticais graves em quase todas, “erros” oriundos da pouca proficiência na educação de base; frases incompletas, sem coerência ou coesão. Ainda assim, devolvi os textos aos alunos com bilhetinhos anexados, onde leram palavras de incentivo e de que há neles a capacidade de fazer melhor.
            Partimos para o tema da Olimpíada: “O lugar onde Vivo”. Precisávamos tirar fotos da nossa cidade, mas só dispúnhamos de duas câmeras. Captamos algumas cenas próximas à escola e fizemos uso de uma cartilha da história local, do historiador Marum Simão, com gravuras antigas e atuais do município.
            A maior indisposição encontrada durante as oficinas, por parte dos alunos, foi a reescrita dos textos. Eles acham “um saco” fazer tudo de novo. Porém, foi na reforma textual que pude perceber o poeta e o agente social em alguns, quando entenderam que a crônica instiga, emociona, revela... e “expulsa” o nó na garganta, através do “grito” do autor.
            Uma coisa é certa! Se a Olimpíada de Língua Portuguesa não conseguisse trazer benefício para meus alunos, pelo menos, para mim, ela se transformaria em divisor de águas. No passado próximo, o cumprimento do dever; hoje, a aceitação do desafio de EDUCAR e a consciência de que não podemos mudar o mundo, mas podemos ser um referencial positivo e de utilidade aos que nos rodeiam.
            Não vou dizer que meus alunos “entraram de cabeça” na “onda” da leitura e da escrita. Há barreiras quase intransponíveis na busca pela qualidade do ensino para eles. Porém, vejo-os hoje expressando idéias, sentimentos, dando respostas espontâneas acerca de tudo que conversamos em sala. E já arriscam algumas linhas mais ousadas.
            Para nós, a Olimpíada vai muito além de uma competição; ela representa um caminho novo a ser trilhado. E nessa ressurreição da prática de ensinar, encontramos algumas pedras brutas que, se bem lapidadas, viram bons textos, talvez não o suficiente para concorrerem em Escrevendo o Futuro, porém, aos olhos dos pais semi-analfabetos, são uma obra prima, feitas pelos filhos “semi-doutores”. Para mim, essas redações me revelam um resgate processual de ovelhinhas, que se perderam e estão sendo achadas.
            E agora, ressuscitada do meu “sepulcro” pedagógico, quero seguir como mensageira das Boas Novas... todos os dias...